Influencers em miniatura: o novo palco da infância e o silêncio por trás da fama
A nova minissérie documental da Netflix, "Má Influência: O Lado Sombrio dos Influencers Infantis", expõe um tema importante e emergente: o modo como o marketing digital e a as redes sociais estão a tonar a infância numa "ferramenta" de lucro. Baseada no caso de Piper Rockelle — uma criança transformada em estrela do YouTube — a série revela o mundo aparentemente inocente dos kidfluencers.
Por detrás dos vídeos coloridos, dos desafios e das coreografias virais, surgem acusações de abuso emocional, exploração comercial e manipulação psicológica — muitas vezes encobertas pela promessa de fama e dinheiro. Será que o "algoritmo" final de cada vídeo valerá tudo isto ?
Ao contrário dos adultos, estas crianças não têm ainda maturidade para consentir plenamente o que significa estar exposto online. Muitas vezes as redes sociais das crianças são geridas por pais que, intencionalmente ou não, tornam-se agentes, empresários e até produtores de uma marca pessoal com rosto infantil — levantando a sérias questões éticas e legais.
O universo dos conteúdos digitais com crianças vive numa fronteira entre o lar e o palco, onde a diversão se confunde com lucro. Quando é que a expressão espontânea de uma criança em frente à câmara deixa de ser inocente? Num ambiente onde 92% do público de influencers adolescentes é composto por homens adultos, e onde redes sociais fornecem 60% do conteúdo encontrado nos dispositivos de indivíduos com intenções indevidas, a linha entre partilha e exploração não é ténue, é estritamente invisível.
Infância e adolescência sob os Holofotes Digitais
As minisséries Má Influência e Adolescence mostram duas faces do mesmo espelho: o impacto da exposição digital em jovens que ainda estão a descobrir a sua identidade. Em Má Influência, vemos crianças "transformadas" em entretenimento, e a gestão dos adultos que acabam por trocar brincadeiras por visualizações. Em Adolescence, acompanhamos o impacto das redes na formação de identidade, insegurança e procura por validação num mundo onde o valor pessoal parece medido em likes.
Ambas revelam o lado oculto da fama precoce e levantam a mesma pergunta: quem está realmente a proteger estes jovens no mundo digital? Quando a infância vira conteúdo e a adolescência se torna performance, o marketing precisa de parar para pensar.
O Marketing precisa de parar para pensar
Quando os likes e visualizações passam a ser formas de validação, e quando o valor de uma criança ou adolescente é medido pelo "algoritmo" e o engagement, estamos a entrar num território perigoso. A fama precoce, por mais sedutora que pareça, tem um custo e é esse custo que frequentemente é pago em silêncio, pela saúde mental e emocional dos mais jovens.
As plataformas dizem promover “criatividade”, mas muitas vezes negligenciam o seu papel como guardiãs da segurança e do bem-estar destes utilizadores vulneráveis. E os adultos à volta das crianças precisam de refletir seriamente sobre os seus próprios papéis: estão a orientar ou a capitalizar? Estão a apoiar ou a pressionar?
O marketing tem aqui uma grande responsabilidade. Se continuarmos a transformar infância em produto e autenticidade em espetáculo, acabamos por normalizar a ideia de que crescer sob os olhos do público é inevitável ou até desejável. E não é.
A infância e a adolescência são fases que merecem ser vividas e a privacidade também é uma forma válida e saudável de crescer.
Fontes:
Why Adolescence is such powerful TV that it could save lives
Achei o teu post muito interessante, Andreia, e aborda um tema muito atual e sobre o qual todos devíamos refletir!
ResponderEliminarFez-me lembrar da história da Shirley Temple, a pequena atriz sensação de Hollywood dos anos 30 e 40, que entre os 3 e os 10 anos participou em 29 filmes, em papéis em que muitas vezes era sexualizada, usando vestidos muito curtos e sendo agarrada e beijada por homens adultos (https://www.youtube.com/watch?v=WLLSqpYyPD8). Além disso, trabalhava em condições vistas atualmente como perfeitamente condenáveis para atores adultos, quanto mais para uma criança, suportando longas horas e abusos físicos e sexuais.
Não admira que, depois dos 20 anos, Shirley se tenha retirado completamente da indústria do cinema, nem que ao longo dos últimos anos, a quantidade de legislação laboral envolvendo crianças atores tenha evoluído exponencialmente, regulando a sua particição nesta atividade. Em Portugal, por exemplo, as crianças atores não podem trabalhar depois das 20h, devem ter um mínimo de 14h de descanso consecutivas, e a sua participação em atividades artísticas não pode impedir o seu aproveitamento da escolaridade obrigatória.
Infelizmente, a índole humana não evolui tão rápido como as suas inovações tecnológicas, o que faz com que, com o advento das redes sociais, surjam brechas na legislação, que não se estende (ainda) a esses domínios, não conseguindo proteger as pessoas aí, nomeadamente as crianças, mais vulneráveis.
A meu ver, com o tempo, tal como o caso da Shirley Temple despertou a consciência para este problema e espoletou o desenvolvimento de legislação para proteger as crianças atores, também casos como o da Piper Rockelle, sendo expostos em plataformas como a Netflix, irão, aos poucos, conduzir a sociedade a admitir que as condições em que estas crianças trabalham (e vivem) não são minimamente decentes e que estas têm direito a crescer em privado.
Este processo será tão mais rápido quanto mais pessoas ganharem consciência e se opuserem a esta realidade- por outro lado, enquanto continuarem a ter fãs e a lucrar, dificilmente terminará o loop de abuso e rentabilidade em que estas crianças vivem. Para consciencializar o público, as marcas têm um papel extremamente importante- graças ao seu poder de influenciar as opiniões e os comportamentos dos seus seguidores, que podem empregar para finalidades positivas, tornando o Mundo um lugar melhor.
Numa altura em que se fala tanto da responsabilidade social e da comunicação digital, as marcas tomarem publicamente a sua posição em assuntos relevantes para a sociedade não é só uma inteligente estratégia de marketing, mas um veículo para mudar, para melhor, o comportamento das massas. Ao estarem atentas aos problemas ainda não resolvidos da sociedade, como o que aboradaste, as marcas conseguem definir e promover a sua posição, alcançando um resultado win-win, em que conseguem ganhar fama de conscientes socialmente, melhorando a perceção dos consumidores, enquanto também os mobilizam para tomarem ações mais corretas e positivas para todos!
Andreia, o teu post é muito interessante porque aborda um tema super atual e preocupante (a falta de regulamentação sobre a exposição infantil no mundo digital). Nós (sociedade) temos de caminhar para esta regulação e acredito que daqui a alguns anos haja leis rigorosas quanto à exploração das crianças no mundo digital (sim, são exploradas pois parto do principio que os pais ou os seus educadores são conhecedores e incentivadores destas situações). Há 100 anos atrás era normal as crianças trabalharem e a sociedade (ocidental) conseguiu reverter isso de uma forma efetiva (com leis e coimas avultadas às empresas que as empregavam). Mas, quantos anos serão precisos para que esta "liberdade" continue sem que nenhuma autoridade possa atuar? Não é possível deixarmos nos pais/educadores a decisão da exposição. Está à vista de todos, o que vale mais para alguns.
ResponderEliminarAndreia como sempre com posts super interessantes!
ResponderEliminarÉ profundamente inquietante perceber como a imagem e o quotidiano destes miúdos são cuidadosamente editados, controlados e comercializados — frequentemente pelos próprios pais. E aqui coloca-se uma pergunta fundamental: até que ponto estes adultos estão a proteger as crianças, e a partir de que momento passam a capitalizar sobre elas? A fronteira entre apoio e exploração é, na maioria dos casos, praticamente invisível.
Os dados partilhados são alarmantes. Saber que a esmagadora maioria do público destes influencers infantis é composta por homens adultos deve acender todos os alertas. Já não estamos apenas a falar de exposição ou de privacidade, mas de segurança, de bem-estar emocional e psicológico, e de uma responsabilidade colectiva que está a ser sistematicamente ignorada. As plataformas digitais não podem continuar a esconder-se atrás da ideia de que promovem criatividade, quando na prática lucram com a vulnerabilidade de menores.
O marketing digital, enquanto força impulsionadora deste fenómeno, tem uma responsabilidade enorme e urgente: repensar os limites éticos daquilo que promove, celebra e monetiza. Se transformamos a infância em conteúdo e validamos a ideia de que o valor de uma criança se mede em visualizações, likes ou contratos publicitários, então estamos a falhar enquanto sociedade.